Já ouviu falar sobre o mito da águia?
Por volta dos 30 a 40 anos, ela se refugia no alto de uma montanha e começa a casquetar o bico lascado contra a rocha até quebrar. Depois que o novo bico nasce, usa-o para arrancar suas garras sem ponta. Com as novas garras e bico, extrai todas as suas penas velhas. Se não passar pelo processo dolorido de deixar morrer as partes desgastadas e obsoletas, será ela que morrerá - o que a trouxe até aqui não a levará adiante. Mas se tiver a coragem de viver o processo, ganhará novas armas para sobrevoar os vales por muitos outros anos… irá mais longe.
Mas espera… essa história não te lembra algo?
Não é a mesma história da fênix? O processo de se incendiar, morrer e renascer das próprias cinzas?
Não é a nossa história?
Aves enjauladas que esquecem de suas asas e cores alucinantes. Se hipnotizam com bicos, garras e penas de ouro… lindas, mas postiças. Mesmo que tenham nascido em gaiolas, em algum lugar guardam uma vaga lembrança do que seja ser livre. Sabem por instinto que “não é isso… não pode ser só isso”.***
A águia e a fênix honram os processos que garantem sua liberdade: é sobre deixar ir o que não serve mais para começar um novo ciclo com muito mais potência. É sobre questionar tudo que se sabe sobre o mundo e si mesma, destruir crenças e padrões pra construir novos no lugar. Dar espaço pra que algo ainda maior chegue.
Há tempos venho lutando pra quebrar o meu teto. Sei que posso ir muito além dele, mas não tem como se eu não demolir as vigas que o sustentam primeiro.
Pra isso, estudei e detectei conceitos e estruturas que foram aparecendo como respostas sussurradas. Síndrome da Impostora, Síndrome da Boazinha, Complexo de Cinderela… tantos nomes pra tantas coisas que estavam operando no fundo do HD de uma máquina velha; fora os nomes que eu mesma fui dando aos meus processos - caverna, fênix, travessia no deserto - como forma de enrolar o fio de Ariadne nos galhos das árvores conforme ia adentrando meu labirinto. Não queria me perder no caminho - o que eu não me liguei é que eu já estava perdida.
Uma das vigas que demorei a demolir foi justamente essa: ao contrário do que ensinaram, entendi que estar perdida não é ruim. Na verdade, é uma etapa obrigatória, um pedágio, parte do caminho. Eu entrava na jornada era pra me encontrar. E para entender quem se é, é preciso antes romper com tudo que disseram que você tinha que ser e fazer. Parar de reproduzir as vozes e discursos externos que obedecem a todo um mecanismo cujo interesse é manter o pássaro na jaula.
Então sentir-se perdida é estar no vácuo criado quando destituímos todas as referências que nos foram dadas sobre nós mesmas sendo que ainda não temos as nossas novas construídas ou revisadas para repor. É estar naquele limbo entre não ser mais quem você era - um pacote de rótulos & padrões & expectativas dados por outros - enquanto descobre quem você realmente veio pra ser. De que material é feita, quais são seus valores e o quanto você vale, o que merece, o que tem potencial pra ser, o que realmente importa?
Estar perdida significa que você já saiu do mundo antigo e já topou a aventura. Sentir-se perdida é um indicativo de que já está no caminho.
É a fase do “se não é isso… é o quê?”
Por mais que demore um tanto pra encontrar minhas respostas, sei que irei em algum momento. Sei que estou cada dia mais perto, mesmo quando nada parece fazer sentido. Agora sei que é normal que eu caia na lama. Aliás… parece que venho patinando nela desde o início.
⁂
Rebobina um pouco.
O ano era 2014. Estava estacionada em um relacionamento desgastado, um emprego sem sentido pra mim e em amizades tóxicas que me afundavam ainda mais. Me sentia anestesiada, medíocre, vazia. Todos os dias começavam com o peso de ter que sair da cama e terminavam com um choro doído no caminho de volta pra casa. “Não é isso… não pode ser só isso!”
Como uma força que testava até onde o elástico aguentaria sem arrebentar, a angústia foi aumentando. De repente, PÁ - a força soltou e o efeito chicote veio como um tapa: “se não é isso, é o quê então?”
Oito anos se passaram desde que iniciei minha busca por uma resposta.
Daquela época, comecei a sentir o mar de dentro repuxar, o silêncio ensurdecedor me cercando… sabia que algo grande vinha em minha direção, só não sabia o quê.
E então veio a primeira pista. Uma semente, uma ideia, um chamado: se a vida não pode ser só isso e o mundo é tão grande…
…por que não ir até lá procurar pelas respostas?
⁂
Saí do Brasil em dezembro de 2019 e comecei minha viagem de volta ao mundo pela África do Sul, onde visitei um centro de refugiados, ouvi histórias de mulheres do Malawi, Congo e Zimbábue e vi de perto a herança viva do Apartheid. Em Moçambique conheci um dos povos mais doces e ganhei novos olhares ao entrevistar a escritora Paulina Chiziane em sua casa. Em Zanzibar nadei com golfinhos no mar e joguei futebol com homens da tribo Masai Mara. Na Tanzânia, acampei rodeada por oito búfalos no safári do Serengeti e cheguei ao teto da África, o cume do Kilimanjaro, a 5.895m de altitude.
Estava voluntariando em um projeto para mulheres soropositivas pra HIV no Quênia quando a pandemia chegou. Com a ajuda de um indiano que conheci em Nairóbi, encontrei refúgio em um apartamento de frente ao mar de Mombasa, onde vivi o luto pela morte de tantas coisas, dentre elas a de uma amiga viajante tomada pela malária.
Oito meses depois, segui para a Etiópia e concluí a travessia de sul a norte da África ao chegar no Egito, onde morei e viajei sola por outros nove meses. Vi muito além das pirâmides. Deixei minhas pegadas em desertos, vilarejos e templos, nadei e fiz um cruzeiro pelo rio Nilo, amanheci com o sol no Monte Sinai, me tornei mergulhadora no Mar Vermelho e aprendi sobre a cultura muçulmana da melhor maneira possível: tendo um relacionamento esquisito de quatro meses com um boy e fazendo amizade com as mulheres egípcias.
Descobri a magia na Capadócia, passei um inverno de alma na Ucrânia, redescobri a beleza da vida em Budapest e fui duas vezes até o Campo Base do Everest, no Nepal - uma delas vivendo a minha primeira experiência como líder de uma expedição de mulheres.
Foram mil vidas em quase três anos. Deste momento em que escrevo, estou há alguns meses num país que vive o dia a dia sobre placas tectônicas e cercado por 17 mil vulcões - portanto, uma área potencial para terremotos, erupções e tsunamis. Pode crer que não foi à toa que a vida me trouxe pra Indonésia.
Passei por muitas ondas desde que me lancei na busca. Fui enfrentando as situações trazidas pela vida durante a viagem, limpando crenças e dores, entendendo que partes minhas precisavam de cura, o que eu precisava aprender para evoluir à próxima fase. Fui avançando camada por camada até chegar nesse epicentro.
Um dia, passei horas tendo um mesmo diálogo em looping. Pessoas assustadas que eu encontrava na rua perguntavam
“e o terremoto, hein?”
Ao que eu respondia:
“que terremoto? Eu não senti nada…”
Não sei se foi porque estava em cima de uma moto, com a cabeça nas nuvens ou porque talvez já estivesse sentindo caos o suficiente do lado de dentro, mas fato é que não percebi a terra tremer ao nível de 5.8 na escala Richter. Estava amortecida de novo, no ápice de um inferno pessoal que vivia há quase um ano. Logo nas primeiras semanas de Indonésia comecei a ter crises de ansiedade e picos de depressão - era a intuição apitando como uma panela de pressão prestes a estourar, avisando que havia algo errado…
“Não pode ser isso… então é o quê?”
BUM.
Veio o momento da implosão.
Partes minhas se espalharam pra todo lado enquanto eu me apertava em posição fetal no meio de um homestay em Ubud, cidade central de Bali. A terra não estava tremendo, o teto não estava desmoronando - era eu, sozinha, quebrando material, mental e espiritualmente.
Foi quando finalmente a vi. A coisa grande que eu sentia vir na minha direção quando comecei a fazer perguntas tantos anos atrás... a tsunami.
Ela que chegou lavando toda a ilusão embora, escancarando uma verdade doída:
Mesmo depois de tanto tempo e tanta estrada focando incansavelmente nas partes em mim que precisavam morrer pra dar espaço à mulher que vim ser, aquela que encontraria as minhas respostas…
Mesmo depois de tantas mortes e sacrifícios…
Mesmo depois de tudo que evoluí…
Eu ainda não era livre como pensava ser.
Eu tinha arrancado bico, garras e penas múltiplas vezes, tudo pra descobrir que eu havia apenas trocado por novas postiças. Naquele exato momento enxerguei que estava em uma gaiola de ouro - que me foi muito bem vendida, por um lado… Mas, por outro, fui eu que havia comprado.
Eu me coloquei naquela situação porque ainda estava carregada de medos que paralisam. Porque era mais fácil não ter que assumir a responsabilidade de tomar o voltante. Porque ainda obedecia a acordos, crenças, caixas e prisões sobre quem sou e sobre o ‘ser mulher’ que em algum momento da vida tomei como verdades e, desde então, rodavam como programas no fundo da mente… e para agir de acordo com esse script ainda me mantinha em cenários que me limitavam, me podavam, me diminuíam.
Havia vigas principais e ancestrais que eu teimava em preservar na minha estrutura, mas que não podiam mais existir caso eu quisesse elevar meu teto e me tornar tudo. Eram elas que me engessavam nos lugares pequenos aos quais, apesar de não me encaixar mais, volta e meia eu regressava e me mutilava pra tentar caber.
E quando vi toda essa estrutura que existe há séculos em tantas mulheres, percebi que
⁕ Enquanto aceitarmos menos do que merecemos, não estaremos livres.
⁕ Enquanto silenciarmos nossa potência, não estaremos livres.
⁕ Enquanto aquela voz dizendo “não sou boa o suficiente” ou “não estou pronta” nos paralisar, não estaremos livres.
⁕ Enquanto pensarmos que precisamos ser validadas por qualquer coisa externa a nós, não estaremos livres.
⁕ Enquanto sentirmos que o que o outro pensa ou diz de nós nos define, não estaremos livres.
⁕ Enquanto tivermos medo do abandono e da rejeição não estaremos livres.
⁕ Enquanto deixarmos o medo comandar nossa vida, não estaremos livres.
⁕ Enquanto não entendermos que somos autoras de nossas vidas, não estaremos livres.
⁕ Enquanto não assumirmos o poder de dizer NÃO, não estaremos livres.
⁕ Enquanto não entendermos que o poder que o outro exerce sobre nós é um poder que nós mesmas demos a eles, não seremos livres.
⁕ Enquanto não enxergarmos que não precisamos da permissão de ninguém para correr atrás do que nos faz felizes, não estaremos livres.
⁕ Enquanto não assimilar que “não é só isso” porque podemos ser muito mais, não estaremos livres.
⁕ Enquanto dermos toda a nossa energia e potência somente para servir o que nem nos valoriza, não estaremos livres.
⁕ Enquanto vivermos qualquer situação de dependência - seja ela emocional, psicológica ou financeira -, não estaremos livres.
Droga. Eu ainda não era livre.
Ainda não.
E descobrir isso a essa altura do campeonato me rachou…
mas também me trouxe ainda mais perto de conquistar o que vim buscar.
Porque agora que sei,
Posso fazer algo a respeito.
⁂
Há quem fuja desses momentos de dor. Quem sempre procure algo pra se distrair pra não ter de encarar as vigas em si que precisam ser reestruturadas.
Eu já me distraí muito, mas há tempos não fujo mais de sombras - abro os olhos no escuro e as enfrento. Foi um combinado que fiz quando comecei a busca: estaria aqui por inteira. Afinal, não tem como estar presente pra mim se me ausento para as minhas partes que doem.
O que eu fugia de enxergar, na verdade, eram as partes boas em mim. Meu potencial e onde posso chegar. Quando comecei a sentir que “não pode ser só isso…” é porque eu sabia que podia ser mais. Que aquelas caixas eram pequenas demais pra mim - a tsunami era eu o tempo todo. E assim que chegou, mostrou que já não posso seguir acreditando ser marolinha, com medo do meu tamanho, usando bico, penas e garras postiças - ou vai ou voa, não tem plano B.
E às vezes caímos na m*rda mesmo, mas faz parte de se tornar alguém melhor. A vida te empurra pra sair da zona de conforto e destrói todos os alicerces que você usou pra construir sua casa até agora… e ela não faz isso pra te deixar desabrigada. Ela faz isso pra te mostrar que aquelas vigas já estavam podres - poderiam desmoronar a qualquer momento com você dentro. É por amor que ela te mostra o que precisa ser demolido - pra construír algo melhor, mais forte, mais potente e, então, aproveitar pra elevar o seu teto também.
Aliás… Sendo livre, nem teto preciso ter. Viro infinita.
⁂
Não se enganem - estou bem. Bem onde eu deveria estar nesse momento: arrancando o bico, as garras e as penas mais uma vez pra criar minhas novas. Faz parte da minha jornada porque eu decidi que quero ser tudo que eu posso ser.
Ironicamente, entendi que a busca em si é a própria resposta. Não é o destino final, mas quem você se torna no caminho, as amarras que vai soltando para se tornar uma versão melhor de si e os momentos-chave em que você precisa dar o salto que pode definir o rumo de tudo.
Eu acabo de dar um grande salto - a tsunami não deu outra opção. Foi pra isso que eu vim.
E é sobre meus próximos passos e descobertas nessa jornada que escreverei a Livre. Há tempos vinha considerando compartilhar o que ando vivendo e aprendendo em forma de newsletter, num espaço mais seguro e íntimo, onde posso aprofundar nas filosofadas e trocar mais com quem quiser acompanhar (sem intervenções algorítmicas, obrigada - afinal, é sobre ser livre, né?). É um projeto que vai tomar forma conforme for ganhando vida, edição após edição. Quero me permitir criar novos jeitos de contar minhas histórias, mas convidando outras mulheres para tecer comigo de alguma forma.
Porque sei que não ando só. Sei que muitas que me leem sentem e compartilham as dores, os medos, os desejos, a vontade de encontrar respostas… de serem mais livres também. E, afinal, eu acredito que a jornada de uma é a jornada de todas. Que ao dividir minha história e as respostas que encontro pra mim, posso dar chaves para perguntas de outras pessoas e vice-versa.
Pra começar, te convido a pensar por aí:
Como seria uma melhor versão sua?
O que você precisa arrancar no momento para poder seguir em frente e se tornar essa melhor versão? Que medo, crença, hábito ou pessoa presente no seu momento atual destoa e não combina com essa nova realidade?
Fique à vontade se quiser me responder diretamente por email ou compartilhar nos comentários pra que outras mulheres possam se conectar também - de repente você descobre que não está sozinha no que está vivendo ou desejando; de repente você tem a chave que alguém precisa pro caminho dela.
Se não sabe por onde começar a responder, deixo uma primeira pista - Indomável, de Glennan Doyle, caiu no meu colo no momento em que escrevia sobre tudo isso (***) e recomendo absurdamente a leitura. É o exemplo perfeito de como é possível encontrar respostas nas jornadas de outras mulheres quando elas compartilham suas histórias.
Só o primeiro capítulo já vale ouro - eu duvido você não sentir um arrepio sequer ao ler sobre a epifania que surgiu do seu encontro com uma gueparda ao visitar o zoológico com suas filhas. Glennan praticamente descreveu o que eu sentia no meu mundo antigo, antes de iniciar minha busca, e que me fez despertar mais uma oitava recentemente. Meu olhos se arregalaram quando li nas suas páginas as palavras que eu tinha *acabado* de escrever no computador: “não pode ser só isso”…
E não é. Te garanto - e mostro nas próximas edições de Livre :)
Obrigada por estar aqui e vamos nessa, juntas e juntos,
com amor e coragem,
M.P.
Obrigada por ter lido até aqui! Se sentir que a Livre pode fazer sentido, ajudar ou inspirar alguém, compartilhe :)
Ler Marina é sentir pulsar amarras num ímpeto de liberdade. Sinto uma expansão de alma, e um mundo de vias a seguir. Ler Marina é me entregar em um mergulho seu e tão meu.
Obrigada Mapê, por tanto.
Ma, toda sua arte aqui, sua grandeza, sua coragem, sua liberdade, seu exemplo, sua força, que ao compartilhar sua história, traz tantas curas. Aqui pra mim, muitos insights, um BUM, uma explosão rs :)